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Em decisão unânime, desembargadores acataram pedido de empresa privada em ação que questionava legitimidade da criação do parque Estadual Cristalino II, na região norte do estado

 

Uma das mais importantes áreas de conservação de biodiversidade do mundo e barreira ecológica no Arco do Desmatamento, na Amazônia mato-grossense, perdeu mais uma etapa processual na disputa para uma empresa que tem entre seus sócios, Douglas Dalberto Naves. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), ele é “laranja” do maior desmatador da Amazônia brasileira, Antônio José Junqueira Vilela Filho.

Nesta terça-feira (23), por unanimidade, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso deu ganho de causa à Sociedade Comercial do Triângulo Ltda. em ação que questiona a legitimidade de criação do Parque Estadual Cristalino II. Este, abrange os municípios de Novo Mundo (a 800 km de Cuiabá) e Alta Floresta (a 791 km de Cuiabá). Por sua vez, a empresa mira o desenvolvimento de atividades econômicas inviabilizadas pela proteção à unidade de conservação.

Parque Estadual Cristalino II – Foto: João Paulo Krajewski

Sem visão global do processo de constituição do parque, e advogando em causa própria, a parte alega que não houve consulta à população. Os desembargadores julgaram procedente a reclamação, fechando os olhos para o fato de que se trata de uma área prioritária para a conservação da biodiversidade da Amazônia.

O processo se arrastava desde agosto de 2022, quando o TJ decidiu em favor da Triângulo, especialmente, pela ausência de recursos processuais por parte do Governo de Mato Grosso, que deixou o processo correr solto, perdeu prazos para recorrer e então, configurou-se trânsito em julgado. No entanto, por uma falha processual do TJ-MT detectada em tempo, o Ministério Público teve a chance de apresentar recurso de Embargo de Declaração, negado nesta terça-feira. Na iniciativa, o MP tentava reverter a decisão de extinção do parque. 

A consultora jurídica do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), Edilene Fernandes explica que os desembargadores não concordaram com o MP. “E ignoraram a argumentação de que a consulta para a criação de parque não é um vício insanável, conforme jurisprudência ampla do Superior Tribunal de Justiça”.

Os desembargadores Alexandre Elias Filho, Luiz Octávio Oliveira Saboia, Maria Fago, José Luiz Lindote e Mario Kono também desconsideraram os apelos do MP de que em uma ação privada, não pudesse obter a anulação de um ato administrativo de criação de uma unidade de conservação. A decisão é perigosa e abre a porteira para a liberação de empreendimentos de grande porte, mineração, desmatamento e hidrelétricas, entre outras atividades de alto impacto. 

Edilene avalia que está nas mãos do Ministério Público e do Governo de Mato Grosso, questionar a decisão. “Eles podem entrar com um Recurso Especial, junto ao STJ e Recurso Extraordinário, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a manutenção do parque. O maior obstáculo está em conseguir que esses recursos sejam aceitos com efeito suspensivo, ou seja, mantendo a UC até a decisão final desses tribunais”.

A diretora executiva do Instituto Centro de Vida (ICV), Alice Thuault, cuja instituição acompanha ao longo dos anos as ameaças às quais o parque está exposto, destaca que, na decisão, o Judiciário não se dedicou a uma revisão histórica com rigor necessário.

“Temos várias provas de que a consulta pública existiu. Há jurisprudências de outros lugares que apontam que essa suposta falha, de não haver consulta, o que não foi o caso, não justifica a extinção de parques. Então, esse tipo de decisão pode resultar em desmatamento, aumentando contribuições do Brasil para as mudanças climáticas. Afinal, o desmatamento, que é a transformação do uso do solo, é o que gera mais emissão de CO2 e aumenta a crise do clima”.

Alice destaca ainda que a extinção do Parque Estadual Cristalino II deve repercutir negativamente, frente aos acordos internacionais assumidos pelo Governo de Mato Grosso. 

“Afinal, na primeira fase de julgamento o governo se omitiu. O compromisso pode ser avaliado aí. Se o governo não interpuser um recurso após a publicação do acordo, isso vai ser uma demonstração se o Estado está ou não zelando pelas unidades de conservação estaduais. Se ele não entrar com recurso, isso mostra que para o governo estadual não faz diferença ou até que o Estado está a favor da diminuição das UCs”, cobra.

Em sintonia, a diretora executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, Angela Kuczach, também critica a decisão do TJ-MT. “O que está acontecendo no caso do Cristalino II é um absurdo sem tamanho! Vamos lembrar que esse parque está sendo perdido por W.O., ou seja, pela inação do Governo de Mato Grosso, que à ocasião da primeira decisão, quando teve oportunidade, ‘perdeu o prazo’”.

Ela alerta que é um precedente grave. “Não atinge apenas as unidades de conservação de Mato Grosso, mas todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A sociedade brasileira não pode pagar o preço dessa irresponsabilidade, que pode inclusive comprometer o cumprimento de acordos internacionais de proteção ambiental firmados pelo Brasil”.

Em consonância, o secretário executivo do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), Herman Oliveira, destaca o valor inquestionável das áreas protegidas. “A sociedade, de maneira geral, os tomadores de decisão, operadores de direito precisam entender que precisamos de unidades de conservação. Elas são necessárias, não só para comunidades de vida, de fauna e flora. O ser humano, como parte indissociável dessa ecologia, também precisa delas”.

Cobrando ações efetivas do poder público, reforça que é preciso uma mudança de mentalidade. “Creio que é preciso olhar para frente e perceber que o Cristalino é necessário, tanto quanto as outras unidades de conservação já criadas, independentemente de quem possa postular suas extinções ou das unidades de conservação a serem criadas”.

Preservação de biodiversidade e laboratório de pesquisa

Criado em 30 de maio de 2001 pelo Governo de Mato Grosso, o Parque Estadual Cristalino II, com 118 mil hectares, está localizado na Amazônia mato-grossense, entre os municípios de Alta Floresta e Novo Mundo. Naquele ano, a unidade de conservação foi anexada ao Parque Estadual Cristalino I, criado em 2000, com 66.900 hectares. Ao todo, são 184.900 hectares de floresta amazônica primária que promovem a conservação da fauna e flora do sul da Amazônia brasileira.

Na região dos Parques Estaduais Cristalino I e II foram identificadas mais de 600 espécies de aves, sendo que 25 estão ameaçadas de extinção, 82 espécies de répteis, 60 de anfíbios, 98 de mamíferos, 2 mil de borboletas, 39 de peixes, além de mais de 1.400 espécies de plantas já catalogadas. Ao todo, são 41 espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção e 38 espécies endêmicas.

Além de proteger espécies raríssimas da fauna amazônica, as florestas dos parques estaduais contribuem para o combate ao aquecimento global e a produção de chuvas que são distribuídas no estado de Mato Grosso e sul do Brasil. As unidades de conservação são também um laboratório de pesquisas científicas desenvolvidas por importantes instituições mundiais no âmbito da flora e fauna.

 

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