Em fevereiro, ICMBio e Funai assinaram regras para garantir a moradia de famílias Guarani Mbya na Reserva Biológica Bom Jesus, incluindo caça e construção de casas
Por Lucas Altino
Publicado no O Globo
10/04/2025
A assinatura de um acordo para garantir a presença de famílias indígenas dentro de uma área de preservação criou um racha entre o governo federal e ambientalistas. Em fevereiro, o ICMBio e a Funai oficializaram um Termo de Compromisso (TC) com regras que permitem à comunidade Guarani Mbya continuar vivendo dentro da Reserva Biológica Bom Jesus, no Paraná. Mas, como se trata de uma Unidade de Conservação (UC) onde atividades humanas são proibidas, 68 entidades assinaram um manifesto contra a medida, na semana passada, endereçado à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

A Reserva Biológica Bom Jesus fica entre as cidades paranaenses Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá — Foto: Divulgação/Gabriel Marchi
O argumento do ICMBio e da Funai é que o TC vai solucionar o recente “cenário de insegurança jurídica e de conflitos contínuos, que dificultava a gestão da Unidade e o monitoramento ambiental na área ocupada pela comunidade indígena”. Com o termo, o governo conseguiria “estabelecer limites ao uso dos recursos naturais” e “garantir a conservação da biodiversidade em harmonia com o modo de vida tradicional do grupo Guarani Mbya”. Já o “Manifesto em Defesa do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)”, que também ganhou a adesão de 48 personalidades e ambientalistas, criticou o acordo por criar uma “abertura perigosa de precedentes”, a partir da flexibilização de proteções ambientais.
As divergências começam nas informações sobre a chegada dos Guarani Mbya na reserva. Segundo os autores do manifesto, como SOS Mata Atlântica, Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza, Rede Pró-UC e o Partido Verde do Paraná, os indígenas se mudaram para o local após a conclusão dos estudos técnicos no processo de criação da reserva, iniciado em 2009. Eles teriam saído da Terra Indígena Mangueirinha, a 500 quilômetros de distância, e chegado à nova área em abril de 2012, apenas dois meses antes da assinatura do decreto federal que criou a Reserva Biológica (Rebio) Bom Jesus.
Segundo a Rede Pró-UC, os documentos do processo de criação de parque mostram que em 2010 a Funai informou que não havia comunidades indígenas vivendo na terra que viraria a reserva. O local era originalmente uma fazenda, que pertenceu ao Banco Bamerindus. Em 1997, após o banco falir, a então Fazenda Bom Jesus foi transferida ao Banco Central, e depois ao Ibama, até virar uma Rebio.
Já o ICMBio, que publicou um texto com “perguntas e respostas” sobre o TC, diz que a presença indígena na reserva é uma “realidade há mais de 12 anos”, e que os Guarani Mbya estão lá desde antes da criação do parque. “O histórico de deslocamento dos Guarani Mbya está documentado e reconhecido em pareceres técnicos da Funai e do Ministério Público Federal”, argumenta o instituto, que tem a responsabilidade de gerir as Unidades de Conservação do país.
Com o termo, a comunidade indígena, hoje formada por sete famílias identificadas pela Funai, em um grupo composto ao todo por 28 pessoas, poderá construir moradias, além de plantio de roças, cultivos e criar animais domésticos em uma área de 19 hectares, chamada de Zona de Uso Intensivo. A reserva tem 6.717 hectares, e todo o território restante (6.698 hectares) serão a Zona de Uso Disperso, onde os indígenas podem praticar outras atividades.
— A Constituição Federal trata Área Protegidas, de uso restrito ou comunitários, assim como Terras Indígenas, como categorias distintas. E é com muita preocupação que vejo as práticas em curso no ICMBio, que não está respeitando o texto constitucional brasileiro. Quando tratamos de áreas de proteção ambiental, principalmente as de proteção integral, atividades que podem comprometer seus atributos devem ser vistas com muito cuidado — afirmou Feldmann.
No manifesto, os signatários “ressaltam total apoio” à busca de áreas “adequadas” para a criação de Terras Indígenas, mas afirmam que a sobreposição dos dois tipos de unidade não atende nem ao propósito de conservação ambiental e nem à causa ambiental. O texto critica o TC por representar “não apenas uma abertura perigosa de precedentes como uma demonstração de pouca aderência do Governo Federal com o compromisso de proteger e de garantir o incremento da gestão de nossas UCs, cada qual dentro de suas atribuições”.
O ICMBio, por sua vez, diz que “respeita o debate democrático e valoriza a pluralidade de opiniões” e que, com esse espírito, “recebeu o manifesto assinado por atores com longa trajetória na defesa do meio ambiente que expressam preocupações legítimas sobre o futuro das Unidades de Conservação (UCs) de proteção integral”. A nota enviada pelo instituto acrescenta: “A presidência do ICMBio se reuniu virtualmente, em 7 de abril, com membros da coordenação da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), formada por entidades que subscreveram o manifesto, com o objetivo de criar canal de diálogo permanente sobre o tema”.
Permissão de caça é criticada
As entidades também criticaram a permissão para caça de animais silvestres dentro do TC, como forma de manter o estilo tradicional de vida dos indígenas. A cláusula 16ª do termo diz que: “A atividade de caça será voltada para a alimentação familiar e questões espirituais, não sendo nunca comercializado o seu produto”. A reserva abriga plantas e animais raros, e com risco de extinção, como bugio, macaco-preto-preto, cachorro-do-mato-vinagre, o pararu-espelho e a palmeira-jussara.
O ICMBio responde que o TC estabeleceu regras para a caça e que a atividade será “acompanhada rigorosamente” pelo instituto, que argumentou que “não há indícios de impacto ambiental significativo na fauna da Rebio desde a ocupação indígena”.
Os ambientalistas também destacam que toda a área da Rebio já é mencionada no TC como “reivindicada pela comunidade indígena”, o que viria a ser a “Terra Indígena Kuaray Haxa”. Em 2023, a Funai criou o Grupo Técnico para fazer os estudos de identificação e delimitação dessa Terra Indígena. Segundo o ICMBio, “situações de sobreposição entre terras indígenas e unidades de conservação já ocorreram no Brasil, estão previstas nas normas brasileiras e exigem soluções integradas que respeitem tanto a conservação ambiental quanto os direitos dos povos indígenas”.
Por fim, o manifesto acusa o governo federal a enfraquecer “a preservação das Unidades de Conservação de Proteção Integral (UCs) a partir da emissão de termos que permitem o uso das UCs para fins pessoais, contrariando a Constituição Federal e prerrogativas do próprio SNUC”. Além do caso da Rebio Bom Jesus, as entidades citam que há discussões para se permitir a caça em outras áreas ambientais, como o Parque Nacional Iguaçu e as Florestas Nacionais de Canela e de São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul.
Veja a íntegra da nota enviada pelo ICMBio
“O ICMBio respeita o debate democrático e valoriza a pluralidade de opiniões. Com este espírito, a instituição recebeu o manifesto assinado por atores com longa trajetória na defesa do meio ambiente que expressam preocupações legítimas sobre o futuro das Unidades de Conservação (UCs) de proteção integral, especialmente a Reserva Biológica (REBIO) Bom Jesus, localizada no Paraná. A presidência do ICMBio se reuniu virtualmente, em 7 de abril, com membros da coordenação da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), formada por entidades que subscreveram o manifesto, com o objetivo de criar canal de diálogo permanente sobre o tema.
Os estudos e a consulta pública para criação da UC foram realizados em 2009. Os registros oficiais do ICMBio indicam que o grupo indígena, atualmente composto por 28 pessoas, teria chegado ao local cerca de três meses antes da criação da REBIO, que ocorreu em 5 de junho de 2012. A UC convive com a presença das famílias Mbya Guarani desde a sua criação. Porém, até agora, não havia mecanismos para regular o uso de recursos naturais por esta comunidade.
Já há protocolo desenvolvido pelo ICMBio para monitoramento da biodiversidade na área. O texto do Termo de Compromisso (TC) pode ser adequado periodicamente a partir dos resultados do monitoramento.
O TC divide a área de sobreposição da REBIO ao território indígena em duas zonas: uma de uso intensivo, com 19 hectares, onde pode ocorrer a ocupação das famílias, com construção de casas e demais infraestruturas e estabelecimento de cultivos; e outra de uso extensivo, com 6.698 hectares, onde está previsto uso ocasional, compatível com o modo de vida tradicional dos indígenas, sem a construção de infraestrutura ou abertura de áreas.
Um Grupo de Trabalho da Funai fará a delimitação da Terra Indígena (TI), que pode coincidir total ou parcialmente com a área definida no TC e/ou abranger áreas fora da REBIO. Avançando-se o processo de demarcação, fica instituída uma dupla afetação entre a REBIO e a TI. A dupla afetação é prevista na legislação brasileira e vem ocorrendo em vários casos de sobreposição territorial entre TIs e UCs no Brasil. Nestes casos, busca-se a manutenção dos modos de vida tradicionais associada à conservação da natureza, de forma compartilhada, no exercício da aplicação dos princípios constitucionais de valorização dos modos de vida indígenas (Art 231) e de conservação da natureza (Art 225).”